Bothrops jararaca

Texto por Bruno F. Fiorillo

Bothrops jararaca. Imagem retirada de: Amaral A (1978): Serpentes do Brasil: iconografia colorida. São Paulo: Ed. Melhoramentos. p. 152.

Embora seja muitas vezes tratada como “apenas mais uma espécie muito comum”, e às vezes até com certo desprezo, a jararaca (Bothrops jararaca) é uma espécie endêmica da Mata Atlântica e está distribuída principalmente através de florestas ombrófilas e semideciduais da região sudeste do Brasil (leia também sobre a história natural desta espécie aqui).

O que se conhece por Bothrops jararaca hoje, pode se tratar na verdade de um complexo de espécies. As outras espécies do grupo, são jararacas insulares endêmicas de ilhas costeiras da região sudeste do Brasil. Além disso, existem outras espécies insulares que ainda não foram formalmente descritas.

Há aproximadamente cinco milhões de anos, o soerguimento de montanhas na região costeira da Mata Atlântica e a consequente interrupção de massas de ar úmidas vindas do oceano Atlântico, resultou na fragmentação do continuum florestal das regiões sul e sudeste do Brasil que ficariam intercaladas por regiões áridas. Uma das hipóteses para a variação genética das populações de B. jararaca é que este processo teria levado à divergência de duas grandes linhagens filogenéticas (que atualmente ocupam as regiões Sul/Sudeste e Nordeste do Brasil) logo após este período (há cerca de três milhões de anos).

Outra hipótese é que este processo teria sido bem mais recente, há cerca de um milhão de anos (ao final do Pleistoceno), também devido a mudanças climáticas. Neste caso a divergência de espécies do complexo B. jararaca estaria relacionada à Teoria dos Refúgios. Segundo esta teoria, grande parte do continente americano se tornaria extremamente árido e a biota residente em fragmentos florestais permanecia retraída e isolada o que contribuiria para a especiação (processo de geração de espécies).

Um estudo mais recente sugere ainda que nenhuma das hipóteses acima são suficientes para explicar sozinhas a evolução do complexo B. jararaca. Ao invés disso a separação das linhagens filogenéticas do Norte e Sul da Mata Atlântica teria ocorrido devido à fragmentação da Mata Atlântica causada por mudanças climáticas (como sugere a segunda teoria) mas em uma época bem mais antiga.

O grupo jararaca e as Ilhas costeiras

Bothrops insularis. Imagem retirada de: Amaral A (1978): Serpentes do Brasil: iconografia colorida. São Paulo: Ed. Melhoramentos. p. 150.

A jararaca do continente não só divergiu ao longo da costa brasileira, como também teria originado as espécies que atualmente ocupam algumas das ilhas da região atlântica costeira (e.g. B. alcatraz, B. insularis, B. otavioi, B. sazimai).

Algumas das ilhas que abrigam as diferentes espécies de jararacas (Alcatrazes, Queimada Grande e Vitória) estão localizadas a poucos quilômetros da costa (30 a 40 km). Sabe-se que a profundidade no entorno dessas ilhas varia entre 40 e 60 m. Entre 12 e 10 mil anos atrás (durante o final do Pleistoceno) o nível do mar era cerca de 60 m mais baixo, o que consequentemente permitiu sua colonização.

A Ilha dos Franceses, onde ocorre B. sazimai, está situada a apenas 4 km de distância da costa e apresenta uma profundidade de entorno relativamente pequena (cerca de 4 m). De acordo com Barbo e colaboradores (2016), a espécie pode ter especiado em ainda menos tempo, há cerca de 4 mil anos (durante o Holoceno), quando o nível do oceano era de 4 a 6 m mais baixo.

O isolamento destas serpentes em suas respectivas ilhas, as torna, consequentemente, ameaçadas de extinção. Isto porque qualquer evento (seja ele natural ou antrópico) que atinja estas ilhas pode extinguir rapidamente estas espécies. Além disso, os incêndios ocorridos no passado na Ilha de Alcatrazes e na Ilha da Queimada Grande causaram uma perda considerável de habitat, propiciando o avanço de vegetação exótica invasora, uma das principais ameaças às espécies locais. Além da perda de habitat, há indícios de que a população de B. insularis sofre com a retirada de indivíduos para o tráfico de animais no mercado negro.

Na ilha da Vitória, onde ocorre B. otavioi, as comunidades caiçaras tradicionais   ocasionalmente provocam desmatamento, atividade agrícola de subsistência, e também a introdução de animais domésticos, o que pode causar uma ameaça direta à essa espécie.  Uma situação semelhante é observada em B. sazimai. Devido à proximidade da Ilha dos Franceses à costa, e à presença de uma pequena praia, o trânsito constante de turistas resulta em deposição descontrolada de lixo e até mesmo riscos de incêndios. Além disso, pela alta densidade de serpentes nesse local turístico, há um grande risco de acidentes envolvendo visitantes.

O turismo não deve ser a causa da extinção das espécies, e sim, deve gerar conhecimento para que as espécies sejam preservadas. O ecoturismo, em particular, tem o objetivo de fornecer às pessoas oportunidades de apreciação da natureza. Tal contemplação precisa ser feita, sempre, com muito respeito e responsabilidade, pois todos somos responsáveis diretos pela preservação do ambiente que habitamos. O que pertence à natureza deve ficar na natureza e o ambiente visitado deve permanecer o mais intacto possível,  para que as gerações futuras tenham o privilégio de visitar e conhecer.

Glossário

  1. Complexo de espécies: conjunto de espécies estreitamente relacionadas, e frequentemente muito similares morfologicamente.
  2. Endêmico: nativo e restrito à uma determinada região.
  3. Linhagem filogenética: ramo de uma árvore filogenética, que por sua vez apresenta dois ou mais ramos (que representam espécies descendentes).

Revisão do texto por

Fausto Erritto Barbo. E-mail: faustoebarbo@gmail.com CL
Instituto Butantan, Laboratório Especial de Coleções Zoológicas, São Paulo, SP, Brazil.

Referências

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Amaral A (1978): Serpentes do Brasil: iconografia colorida: a colour iconography. São Paulo: Ed. Melhoramentos. [Link]

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Barbo FE, Gasparini JL, Almeida AP, Zaher H, Grazziotin FG, Gusmão RB, Ferrarini JMG, Sawaya RJ (2016): Another new and threatened species of lancehead genus Bothrops (Serpentes, Viperidae) from Ilha dos Franceses, Southeastern Brazil. Zootaxa 4097: 511–529. [Link]

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